quarta-feira, 13 de março de 2013

Amour na madrugada


A casa estava em silêncio quando comecei a ver. Levantei-me de noite porque tinha insónias. O Gato preto veio comigo para a sala e deitou-se no meu colo. Não acendi as luzes. Há qualquer coisa de estranhamente familiar que o tempo faz a uma casa. É como um novo braço. Ou uma perna. Se fechar os olhos sei onde estão os meus dedos. Se fechar os olhos sei onde está a porta. Sem precisar de contar os passos. Fiz uma pausa a meio. O Gato preto resmungou. Fui à cozinha fazer um cappuccino e vi o resto do filme. Não quis crescer e nunca quis ser adulto. A não ser pelas miúdas. E valeu a pena por ela que continuava a dormir no quarto. No final do filme ainda sem sono liguei uma luz e li umas folhas do livro que tinha em cima da mesa. Mas levantei-me e fui ao quarto. Ouvi-lhe a respiração mansinha. Sem ela notar passei-lhe a mão pelo rosto. A pele estava quente do sonho. Um dia vai perder a elasticidade. Quero ver. Quero voltar a passar a mão pelo rosto. Voltei à cozinha e fiz um prato de cereais com leite e sentei-me à mesa sozinho.

Um dia vou ser velho. Velho a sério. E não sei o que vou levar da vida. Vou levar memórias. Espero que as consiga levar. Vou ver os meus pais cada vez ficarem mais velhinhos. Eu tenho de vida quase tanto eles têm de estar juntos. Ainda andam na rua de mãos dadas. Mesmo depois de se chatearem. São diferentes. Um do outro. E fizeram dois filhos diferentes. Mas da vida que lhes conheço ensinaram-me as duas maiores lições. A primeira é que uma vida em conjunto custa. A segunda é que a bondade é uma coisa difícil por vezes. Se uma vida em conjunto testemunho. A bondade presenciei. Os meus pais estiveram quase a adoptar uma menina cuja mãe estava numa situação muito difícil. Sentaram-me a mim e ao meu irmão e contaram-nos. Havia esta forte possibilidade de termos uma irmã. Mas só se tudo falhar! E o que pode falhar, mãe? Perguntei. Ajudar a senhora. Durante meses os meus pais com os seus salários pagavam a comida daquela mãe e daquela menina. Pagavam as contas da casa. A minha mãe ligava para toda a gente que conhecia para procurar um trabalho para a senhora. O meu pai fazia o mesmo. O meu pai arranjou as prateleiras da casa da senhora. A menina ia lá para casa ao fim-de-semana quando a senhora tinha de ir fazer limpezas. Até que um dia tudo terminou. A senhora estava bem. Arranjou um empregado. Arranjou um namorado que gostava da menina. Hoje continuam a envelhecer ao lado um do outro. Tal como os meus pais. Eles, os meus pais, podem não mudar o mundo, mas ajudaram a ser um bocadinho melhor.

Nunca vou conseguir estar à altura dos meus pais.

Acabei os cereais e voltei para a cama.  Antes de adormecer pensei que gostava de escrever a história deles. Apenas se eu fosse capaz...

2 comentários:

Anónimo disse...

doeu-me esse filme. o final é... nem sei como dizer...

E disse...

Exacto, percebo, nem sei como dizer...