quarta-feira, 26 de junho de 2013

Pequeno mistério sobre as atracções humanas



A minha mãe tinha uma amiga que era mais velha que ela 10 anos. Logo muito mais velha que eu. Vi-a muitas vezes lá por casa a beber chá com a minha mãe. Habituei-me desde cedo a vê-las sentadas naquela mesa pequenina junto à janela. Falavam baixinho e por vezes riam alto. Era muito diferente da minha mãe. Mais desarrumada. Como se a roupa que vestisse e ela própria, de uma certa forma, fossem construidas todas as manhãs à pressa. Mas todos aquelas falhas eram harmoniosas. As suas roupas eram sempre claras e mais para o largo. Eram as mesmas que via nas revistas da minha mãe e  de que elas falavam. O seu cabelo era ondulado, pelos ombros, sempre de risco ao meio. No Verão andava sempre de sandálias. Foi sempre assim que a vi quando um dia com os meus pais fomos com ela e o namorado de férias para o sul de França.

Um dia acordei mais cedo e ia para a piscina quando a vi a ler na mesa de ferro branco. Fumava um cigarro e não parecia ter dado conta que eu estava ali. Quando me viu sorriu-me e convidou-me a sentar ao lado dela. Pousou o livro. Tinha uma capa amarela e tinha escrito Sartre. A pele era morena e nunca tinha reparado nos seus olhos. Eram grandes, muito castanhos. As rugas não lhe escondiam os anos. Mas ela parecia não se importar. Então, ias para a piscina sem ninguém saber? Foi o que me perguntou. Sim, mas os meus pais não se importam, eu nado muito bem. Acredito que sim. E aposto que é mais divertido nadar de manhã, quando não está ninguém acordada. Vocês está! Ela riu-se. Eu não conto, durmo pouco. Olhei para ela desconfiada. A minha mãe apareceu e eu fui para a piscina. Os dias foram-se passando como se passam de férias. Para mim, naquela idade, não eram muito diferentes do que estar na escola. Com a diferença que ali não podia ver os meus amigos. Um dia via-a novamente sozinha a ler o livro de capa amarela. Que livro é esse? Ela olhou para mim divertida. Gostas de ler? Gosto mais de escrever. Ah gostas, e escreves sobre o quê? Encolhi os ombros. Eu dantes também escrevia, mas depois apaixonei-me. Parece-me uma razão parva para se deixar de escrever. E surpreendi-me com o meu descaramento. Mas ela riu-se com vontade. E tens toda a razão, disse-me divertida. 

Meses mais tarde encontrei-a em minha casa a falar com a minha mãe. Quando ela ficou um bocadinho sozinha fui ter com ela e disse que já sabia sobre o que gostava de escrever. E é sobre o quê? perguntou-me. Sobre pessoas. E cheio de confiança disse que gostava de escrever sobre pessoas, sobre as mulheres serem diferentes dos homens. Ela parecia divertida em ouvir-me. Então disse-lhe a minha maravilhosa teoria de que os homens apaixonam-se pelo corpo e as mulheres pelo rosto. Ela riu-se enquanto me fazia uma festa na cara. Meu querido, estás tão perto mas tão longe, vês as coisas ao contrário. Foi por um rosto com uns bonitos olhos castanhos que eu deixei de escrever, disse-me mesmo antes de a minha mãe chegar e terminar a nossa conversa.

Já era quase adulto quando a minha mãe me disse que a sua amiga tinha falecido. O cancro tinha-lhe levado. E eu pedi para ir com ela ao funeral. Foi pelo caminho que a minha mãe me disse que se tinham conhecido na faculdade de letras. Apesar da diferença de idades. Ainda lhe perguntei porque ela tinha ido para a faculdade muito tarde. Mas a minha mãe não soube responder. Acho que simplesmente gostava de aprender, disse-me. Aquele a que ela chamava namorado foi o seu grande amor. Eram muito diferentes um do outro. Mas de uma amizade e cumplicidade a toda a prova. Como se percebessem que eram duas pessoas que não pertenciam a ninguém. Mas gostavam muito um do outro. Porque, acima de tudo, respeitavam a individualidade um do outro. Naquela altura, e por curiosidade, já tinha lido um livro que tinha comprado de Sartre. E o que a minha mãe me contava eu entendia perfeitamente. Mas não percebia porque ela um dia me tinha dito que por se ter apaixonado tinha deixado de escrever. Não perguntei à minha mãe e fiquei sem resposta.  

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