sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Som Da Cotovia

A primeira vez que fui a Nova Iorque tinha 8 anos. Ou 10. Não me lembro, a sério. Fui contra-vontade do meu pai. Ele ia em trabalho e eu decidi que ia também. Quando eu a minha mãe o fomos levar ao aeroporto, nas despedidas, fugi para a zona das portas de embarque. Quando o meu pai chegou ao pé de mim tinha já perdido o bom humor na corrida. Vinha com ele um segurança. Gritei que também ia e também ia. Na minha mochila tinha uma muda de roupa escondida dos meus pais quando saímos de casa. O meu pai bufou. O segurança riu-se. E contra a sua vontade comprou-me um bilhete de última hora. No balcão tentou explicar à menina que o atendia da melhor forma. O meu filho fugiu para porta de embarque e quer ir à viva força comigo. Recordo a conversa de 10 minutos que o meu pai teve com a minha mãe. A minha mãe dizia que estava de férias. Que sempre quis ir. Que o Hotel onde ele ia ficar tinha onde me deixar durante o dia. E depois poderia levar-me a fazer mil coisas. E foi este o argumento que ganhou o meu pai. Ter-me lá. Poder passear comigo naquela cidade que ele adorava. Dei um beijo na minha mãe e ela abraçou-me, porta-te bem, disse-me. Claro, mãe.
 
Durante a viagem fiz o meu pai questionar se tinha sido uma boa ideia. Falta muito? Falta muito? Falta muito? As Hospedeiras acharam-me piada. Deram-me bolos. Levaram-me ao cockpit. Vi o céu lá de cima. E foi o mais perto que tive de Deus. Azul em cima. Azul em baixo. Azul. E ficou a minha cor preferida. Quando chegamos tinha chegado à minha cidade preferida.
 
O meu pai na primeira noite levou-me a jantar fora. Levou-me ao Times Square. Tudo era cor e tudo era movimento. Eu era pequenino. Estive sempre a olhar para cima. O meu pai sorria a ver-me olhar para tudo de boca aberta. Gostas? Sim, sim, respondi quase aos gritos. Nos dias seguintes sempre que o meu pai chegava fazíamos alguma coisa diferente. Num dia fomos andar de bicicleta no Central Park. Subimos ao alto de prédios que não sabia o nome mas tinham filas enormes. Uma noite estávamos no hotel. O meu pai estava a ler uns documentos e eu a ver televisão. Na altura já percebia um bocado de inglês. Pai, disse, porque é que há pessoas que dizem que a cidade é perigosa? Onde eu fico durante o dia dizem que a norte a cidade é perigosa. O meu pai pousou o que estava a ler e perguntou-me porque é que tinham dito isso. Não soube responder, apenas que tinham dito isso. No dia seguinte quando o meu pai chegou disse que íamos a um sítio. Entrei num carro com ele e estava lá um homem de cor. É o Terrel, disse-me o meu pai, trabalha comigo e é daqui. Eu cumprimentei-o. E ele deu-me de volta um sorriso enorme de grandes dentes brancos. Durante o caminho o meu pai e o Terrel iam a falar. Quando o carro parou meu pai deixou-me sair. Perguntei-lhe onde estávamos. Os prédios eram mais baixos. As ruas um bocado mais pequenas. Foi Terrel que me respondeu. Falou devagar para perceber o que me dizia. Isto é o Bronx, onde eu vivo. Não tens medo? perguntei. Ele sorriu e disse que não. 
 
Nesse final de tarde aprendi a jogar basebol com os miúdos pretos na rua. Falavam rápido e quase que não os percebia. Mas os putos não precisam de falar para se perceberem. Quando bati a minha primeira bola toda a minha equipa gritou de contente. Não interessava que eu era o único branco. O branco que não  falava com eles. Que não sabia jogar. Tinha feito um ponto para a minha equipa. Havia um que tinha um skate. Pedi para andar. Caí. Uma vez e outra. Todos se riram de mim. Eu ri-me com eles. Ria-me quando eles tentavam dizer o meu nome. Eles riam-se quando eu dizia o nome deles. Descemos a rua sozinhos e fomos comprar bolos e gomas e chocolates. Eu não tinha dinheiro comigo. Nem tinha o dinheiro deles. Mas provei o que eles compraram porque me deram a experimentar. E viram a minha reacção quando provei aquelas coisas que não sabia o nome. Eu e o meu pai jantámos na casa do Terrel. Perguntaram-me se eu tive medo. Disse que não, era igual ao meu bairro. 
 
Quando nos fomos embora Terrel perguntou ao meu pai se me podia dar uma coisa. O meu pai disse que sim. E ele deu-me um livro. Em inglês. Não o conseguia ler naquela altura. Em Portugal, uns anos depois, li o mesmo livro em Português. E hoje, passados tantos anos comecei a ler aquele livro. O que quer dizer que o estou a reler. Mas a ler na língua original um livro que tem mais de 15 anos na minha posse. Estou a reler To Kill a Mockingbird.
 
"You never really understand a person until you consider things from his point of view... Until you climb inside of his skin and walk around in it." 

6 comentários:

Lia disse...

Adoro o header, Ego :)

E disse...

Obrigado. Veio de Londres, foi feito por uma amiga

Carol disse...

Uma criança com gostos requintados :) Parece tirado de um bom filme.. há crianças com juventudes boas, ainda bem!

E disse...

Não é gostos requintaods, é saber que tive a sorte de aproveitar muitas coisas que me foram proporcionadas. E sou muito grato por isso, a sorte que eu tive é igual à sorte que muitos não tiveram.

Carol disse...

Eu disse requintados no sentido de que muitas crianças com essa idade, nessa altura, e quem sabe hoje em dia, provavelmente nem saberiam onde seria NY e qual o interesse de lá ir.Espero que não tenha sido mal interpretada :) Sem dúvida que é de aproveitar todas as oportunidades que a vida nos dá, seja qual for a idade. E, já agora, a simplicidade com que falas de coisas absolutamente maravilhosas é cativante!

E disse...

Não foste, ;)