terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Flashbacks

A minha infância foi a sul de Lisboa. Os verões eram extremamente quentes. Muitas vezes passava os dias fechado no quarto apenas com as gretas da persiana abertas para entrar alguma luz. Não gostava da claridade. Só saia à tarde para dar uns toques na bola em frente da minha casa. Passava os dias a ouvir música melancólica. Gostava de wonderwall dos Oásis. Mas também de Motörhead, e ouvia vezes sem conta Ace of Spades. A música era a banda sonora para o quer que fosse. Gostava de ler com o som de qualquer coisa por detrás. Lia tudo a que deitava a mão. Foi assim que, com os meus pais a trabalhar, li "Com Cavalo também se Abatem". E o que estava no livro foi uma descoberta que às escondidas todas as tardes levava para o escuro do quarto. Enquanto os meus amigos apanham o autocarro para a praia eu mantinha a pele branca e lia sobre heróina.

Descobri umas semanas mais tarde porque o meu pai tinha aquele livro. Um amigo de infância era consumir e tinha falecido há uns meses. O meu pai e o seu amigo eram de um sítio onde as fábricas ou a a pesca eram o destino de quase todos os rapazes quando se faziam homens. O meu avó mandou o meu pai para Lisboa trabalhando de sol a sol. O seu amigo não teve sorte igual. Ficou e dedicou-se ao mar. A pele marcou-se. Endureceu a alma. Gastou o sorriso.. Perdeu alegria. O mar, para quem vive dele, não é um romance. É a única frase que conheço dele quando um dia se encontraram e eu estava com o meu pai. Lembro-me do silêncio entre aqueles homens. Falaram apenas com os olhos. O meu pai abraçou-o. Ele encolheu os ombros. Cuida do míudo e da tua mulher, disse ele ao meu pai quando se despediram. Soube que foi a última vez que o meu pai o viu. 




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