As
horas passaram devagar. Ou passam sempre quando não se tem nada que fazer.
Fumei mais de metade do maço. Sentia a boca a fumo. Um gosto que se misturava
com o ácido do vinho e o frito das pataniscas. O café ia-se enchendo lentamente
com o meu fumo e o dos outros. Já passava das três quando Fernando entrou.
Ainda no balcão reparou em mim. Fez-me um sorriso de dentes arreganhados. Mas
era um sorriso simpático, de quem não tem muito jeito para falar com as
pessoas. Sentou-se ao meu lado depois de me cumprimentar com algum formalismo.
Era uma nota da sua persona. Um formalismo acentuado no trato. Cheguei a fazer
o teste, tratei-o por tu mas respondeu-me sempre em você. Ao olhar para
Fernando hoje era olhar para o Fernando de ontem. O mesmo fato. O mesmo olhar.
Os meus óculos e o bigode no mesmo cumprimento. Uma pasta com coisas debaixo do
braço. A sua pessoa ganhava-me à curiosidade. Além de Ofélia começava a
criar-se outras perguntas. Tinha amigos? Na minha cabeça é apenas um tipo
solitário. Que vive na triste melancolia criada por si. Não o imagino violento.
Não o imagino expansivo, criador de gestos que não sejam cuidados. Gestos rudes
não saem de punhos pequeninos e sem pelos como os dele. E que raio é a Orpheu?
Consegui
perguntar-lhe sobre Orpheu. Mais para meter conversa. Porque era o único
assunto que não me interessava. Não me podia interessar algo que não fazia
ideia o que fosse. Ele não me respondeu logo. Primeiro bebeu um café e acendeu
um cigarro. Orpheu é a salvação da literatura. È a iluminação em páginas de
revista. È o sonho que ele diz ter. É um projecto de amizade. É o expoente de
uma homenagem a um amigo. Fiquei confuso com o que me dizia. Ele percebeu. Orpheu
foi uma revista de um só número criada por si e por um amigo que a vida levou
pelo seu próprio punho. O sucidío foi a saída de Mario de Sá-Carneiro. E agora
é o projecto de homenagem. Terá mais números. Terá de ter. O sonho não termina
com a morte. O sonho vai perdurar.
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