Conheci o Duarte na
faculdade. A faculdade parecia o seu destino natural. Todo o seu percurso fora
isento de falhas. Pautas perfeitas. O curso o que sempre quis. Depois ficaria
na faculdade. Seria um académico. Um grande pensador. Fomos da mesma turma.
Reparei nele nos primeiros dias. Daquelas pessoas que chamam à atenção. Por nenhuma
razão em particular. Não tinha nada de extraordinário. Altura mediana, cabelos
castanhos um pouco compridos, olhos castanhos, roupa à moda. Era o Duarte. As semanas
passaram e ficámos conhecidos depois de colegas. Talvez tenhamos ficado um
pouco amigos. Admirava o Duarte. Conheci a sua inteligência. O pragmatismo
derrubava-me. O raciocínio vencia-me. Gostava do Duarte. No final do quarto ano
o Duarte desapareceu. Notícias diziam que tinha adoecido. Era grave e
misterioso. E todos fomos egoístas. Porque o Verão desse ano foi lento e
maçudo. Dias compridos que se arrastavam. Recolhemo-nos todos para as nossas
vidas. Ninguém o visitou. Ninguém quis saber da evolução do Duarte. O quinto
ano começou e o Duarte não aparecia. Os egoísmos desapareceram. Os dias
começaram a ficar mais curtos e os telefonemas para o Duarte começaram. Continuava
doente. Mas ninguém o visitou. Desta vez era a mãe que atendia o telefone e não
abria a possibilidade de visitas. A ausência instalou-se confortavelmente.
Deixou de ser notado que não estava ali. A vida continuava. Dizíamos e todos
fazíamos por isso. Com os dias cada vez mais curtos com o aproximar do Inverno,
apareceu. Mais magro. De cabelo rapado. Mas o mesmo de sempre. Não se
justificou e ninguém perguntou. Tal como desapareceu alegre e bem-disposto
assim voltou. Foi como se a sua ausência tivesse sido um grande fim-de-semana.
Na sexta estava lá e na segunda novamente. A única diferença era a sua magreza
e o cabelo agora rapado. As roupas eram as mesmas. Nesse primeiro semestre pediu
à faculdade para fazer as cadeiras daquele e as do segundo semestre do quarto
ano. A faculdade autorizou-o. Com o tempo apercebemo-nos que algo estava diferente
para além das mudanças físicas. Havia uma qualquer mudança que não víamos. Que
não conseguíamos identificar. Ninguém dizia nada. Estava ali, era palpável. O
entusiasmo pela faculdade era agora muito diminuto. Continuava a ir todos os
odias. A aparecer em todas as aulas. Mas havia qualquer coisa que parecia estar
deslocada. As suas notas começaram a baixar. Andava no limite da aprovação. Mas
a sua alegria para com tudo o resto mantinha-se. Rumores começaram a crescer
por entre todos aqueles que o conheciam. Ele sabia. Era impossível não se
aperceber. Mas nunca disse nada. Nunca se aborreceu. Talvez tenha considerado
normal. Com o final do curso todos começámos a fazer planos. Mas o Duarte
parecia não ter planos. Não dizia o que queria fazer com a sua vida. O futuro,
o amanhã, era como se não existisse. Tudo podia ser respondido com um encolher
de ombros. Na altura todos julgámos que não se tinha que preocupar com isso. A
família seria o seu suporte. Casas em Lisboa não faltavam. Conhecimentos e
amigos de amigos de familiares eram normais. Seria isso? Nunca ninguém
perguntou. E ele nunca disse nada. Mas o que era exterior era um Duarte igual
ao do primeiro ano da faculdade. Cinco anos atrás. Agora novamente com mais
peso. Mas ainda de cabelo rapado. O último exame acabou, até um dia para ver as
pautas e acabámos o curso. Não o vi mais nesse Verão. Vi-o apenas em Outubro
seguinte. Igual. Sempre igual. Vi-o num jantar de anos de um colega. Todos
tínhamos histórias dos nossos recentes trabalhos, cursos, mestrados, estágios.
Mas não o Duarte. Não tinha nada para contar. Quando lhe perguntaram onde tinha
passado o Verão respondeu na costa alentejana. Quando lhe perguntaram o que ia
fazer na próxima semana respondeu que iria estar na costa alentejana. Quando
lhe perguntaram se trabalhava por lá apenas respondeu que não. Mas o que fazes
lá? Nada. E tudo o que tinha a ver com ele directamente as palavras saiam a
custo. No final dessa noite fomos os dois a pé para casa. Eu morava ao pé dos
pais dele. Iria passar lá a noite antes de voltar para o Alentejo. A medo, mas
com a coragem cobarde do álcool no sangue perguntei-lhe de que tinha estado
doente. Desconversou ao início. Mas quando falou não disse nada. Apenas algo
que o manteve na cama durante muito tempo. Longe de tudo e todos. Demasiado
tempo. Era a única lemúria. Demasiado tempo longe de tudo. E o que fizeste
quando estiveste doente. Li. Apenas e só? Sim. Deixei de ver o Duarte durante
vários anos após essa noite. Soube por amigos comuns que tinha ido para
Londres. Em trabalho? Não, aparentemente de férias. A família tinha dinheiro
que lhe suportasse aquele estilo de vida que já roçava o devaneio. Duarte tinha
um curso numa boa faculdade mas andava a saltar de casa em casa da família e
não trabalhava. Depois de um longo período no Alentejo veio para Lisboa. Alguns
amigos contaram-me que o viam em esplanadas a ler. Quando lhe falavam lançava
sempre o seu melhor sorriso. Um sorriso normal. O sorriso de quem sabe cativar.
Conquistar pela simpatia e charme e desarmava qualquer tentativa de imiscuidade
na sua esfera pessoal. O sorriso de quem não tinha nada. Nada. Nenhuma doença.
Nada, e o nada aqui era a ausência de uma qualquer ocupação. Certa ou incerta.
Depois de Lisboa foi para Londres. As coincidências são tramadas e o mundo é um
lugar pequeno. Um outro colega encontrou-o por lá quando foi de fim-de-semana
com a namorada. Duarte, há tanto tempo, como estás? Bem, e tu, pá? Que estás cá
a fazer? Nada de especial. Estou cá já há uns meses. Visitar e passear.
Continuava a não esconder que não tinha qualquer ocupação. Três anos depois
desse encontro que me contaram encontrei-o. Foi em Lisboa. Tinha saído do
trabalho e subia a Av. da Liberdade a pé quando o encontrei. Foi ele que me
reconheceu primeiro. Sem qualquer embaraço na voz ou desconforto dirigiu-se a
mim. Estava igual. Outra vez magro. Mais do que a última vez que o tinha visto.
Continuava de cabelo rapado. Uma espécie de imagem de marca que tinha deixado
tatuar-se à sua fisionomia. Rosto bem barbeado. Moreno. Estava bem vestido. Com
todos os pormenores de quem ligava ao que se passava nas montras das lojas. Era
o Duarte. Convidei-o para um café que aceitou. E pela primeira vez em anos
vi-lhe um comentário em tom de crítica quando acendi um cigarro. A surpresa foi
forte que o apaguei de seguida. Pedi um café e ele uma garrafa de água. Pousou
a sua tote bag ao lado da cadeira e retirou de lá um caderno que me mostrou com
um sorriso. Perguntei o que era aquilo? O meu último caderno da faculdade antes
da minha doença. Referiu-se a ela. Directamente e sem ter sido interpolado.
Sabíamos que tínhamos sido algo aproximado de amigos. Mas passados estes anos
todos fiquei desconfortável. Mas embalado, e desta vez sem álcool, perguntei-lhe
qual tinha sido a doença. Não respondeu. Fez um dos seus famosos sorrisos e um
gesto com a mão. Aquele gesto que diz que não tem importância. Sabe que intriga
muita gente, mas para ele não tem importância. A única resposta verbal que tive
foi que tinha mudado a sua vida. Não me disse mais nada. Perguntei-lhe se agora
fazia alguma coisa. Sim, trabalho num call center. Não pude deixar de fazer um
olhar de surpresa. É digno, disse-me. Concordei, claro. Pedi desculpa se tinha
sido mal interpretado. Não faz mal. Precisava de me ter ocupado. Ganhar algum
dinheiro que fosse. Morava numa das casas da sua família. Tinha uma
mesada como sempre teve do avô que entretanto faleceu. Mesada essa que a partir
da sua morte passou a ser assegurada pelo Banco e que aumentou quando terminou
o curso. Perguntei-lhe pela família, pelos pais. Estavam bem, disse-me.
- A minha vida, sabes,
nunca mais foi a mesma. Não interessa o que tive. Ou se ainda tenho. Marcou-me.
E não me vai deixar. Há marcas que não são visíveis. Mas eu sinto-a. Todos os
dias quando abro os olhos pela primeira vez de manhã ela está lá. Não podia
continuar como se nada fosse. Terminei o curso porque tinha de ser. Não gosto
de deixar coisas a meio. Mas foi um esforço enorme. Para mim. Como para toda a
gente. Mas este peso é diferente. Nunca mais serei o mesmo, sabes? Ninguém vê a
mudança. Os meus pais viram. Apenas eles. Quando terminei o curso deram-me as
chaves da casa de Aljezur. Agradeci-lhes muito. O Verão foi movimentado. Muita
gente por lá. Mas o Outono e o Inverno foi maravilhoso.
5 comentários:
Vais contar como foi o Outono e o Inverno? (diz que sim :$)
Esta foi a primeira vez que escrevi sobre o Duarte. Houve uma altura que pensei continuar. e cheguei a tentar. Mas nunca aconteceu. Tal como a outra. pode ficar para sempre assim. Já sabes, histórias em Aberto.
Se está em aberto é bom... É sinal que não está posto de lado uma continuação. Por isso, fico à espera!
Talvez por influencia tua, hoje, na hora de almoço, escrevi mais uma pagina de continuação. Talvez haja mais.
Se houver, quero ler. Se não houver, paciência. Outros "eternos retornos" e "duartes" haverão :)
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