terça-feira, 20 de agosto de 2013

O Eterno Retorno - A Primeira História do Duarte



Conheci o Duarte na faculdade. A faculdade parecia o seu destino natural. Todo o seu percurso fora isento de falhas. Pautas perfeitas. O curso o que sempre quis. Depois ficaria na faculdade. Seria um académico. Um grande pensador. Fomos da mesma turma. Reparei nele nos primeiros dias. Daquelas pessoas que chamam à atenção. Por nenhuma razão em particular. Não tinha nada de extraordinário. Altura mediana, cabelos castanhos um pouco compridos, olhos castanhos, roupa à moda. Era o Duarte. As semanas passaram e ficámos conhecidos depois de colegas. Talvez tenhamos ficado um pouco amigos. Admirava o Duarte. Conheci a sua inteligência. O pragmatismo derrubava-me. O raciocínio vencia-me. Gostava do Duarte. No final do quarto ano o Duarte desapareceu. Notícias diziam que tinha adoecido. Era grave e misterioso. E todos fomos egoístas. Porque o Verão desse ano foi lento e maçudo. Dias compridos que se arrastavam. Recolhemo-nos todos para as nossas vidas. Ninguém o visitou. Ninguém quis saber da evolução do Duarte. O quinto ano começou e o Duarte não aparecia. Os egoísmos desapareceram. Os dias começaram a ficar mais curtos e os telefonemas para o Duarte começaram. Continuava doente. Mas ninguém o visitou. Desta vez era a mãe que atendia o telefone e não abria a possibilidade de visitas. A ausência instalou-se confortavelmente. Deixou de ser notado que não estava ali. A vida continuava. Dizíamos e todos fazíamos por isso. Com os dias cada vez mais curtos com o aproximar do Inverno, apareceu. Mais magro. De cabelo rapado. Mas o mesmo de sempre. Não se justificou e ninguém perguntou. Tal como desapareceu alegre e bem-disposto assim voltou. Foi como se a sua ausência tivesse sido um grande fim-de-semana. Na sexta estava lá e na segunda novamente. A única diferença era a sua magreza e o cabelo agora rapado. As roupas eram as mesmas. Nesse primeiro semestre pediu à faculdade para fazer as cadeiras daquele e as do segundo semestre do quarto ano. A faculdade autorizou-o. Com o tempo apercebemo-nos que algo estava diferente para além das mudanças físicas. Havia uma qualquer mudança que não víamos. Que não conseguíamos identificar. Ninguém dizia nada. Estava ali, era palpável. O entusiasmo pela faculdade era agora muito diminuto. Continuava a ir todos os odias. A aparecer em todas as aulas. Mas havia qualquer coisa que parecia estar deslocada. As suas notas começaram a baixar. Andava no limite da aprovação. Mas a sua alegria para com tudo o resto mantinha-se. Rumores começaram a crescer por entre todos aqueles que o conheciam. Ele sabia. Era impossível não se aperceber. Mas nunca disse nada. Nunca se aborreceu. Talvez tenha considerado normal. Com o final do curso todos começámos a fazer planos. Mas o Duarte parecia não ter planos. Não dizia o que queria fazer com a sua vida. O futuro, o amanhã, era como se não existisse. Tudo podia ser respondido com um encolher de ombros. Na altura todos julgámos que não se tinha que preocupar com isso. A família seria o seu suporte. Casas em Lisboa não faltavam. Conhecimentos e amigos de amigos de familiares eram normais. Seria isso? Nunca ninguém perguntou. E ele nunca disse nada. Mas o que era exterior era um Duarte igual ao do primeiro ano da faculdade. Cinco anos atrás. Agora novamente com mais peso. Mas ainda de cabelo rapado. O último exame acabou, até um dia para ver as pautas e acabámos o curso. Não o vi mais nesse Verão. Vi-o apenas em Outubro seguinte. Igual. Sempre igual. Vi-o num jantar de anos de um colega. Todos tínhamos histórias dos nossos recentes trabalhos, cursos, mestrados, estágios. Mas não o Duarte. Não tinha nada para contar. Quando lhe perguntaram onde tinha passado o Verão respondeu na costa alentejana. Quando lhe perguntaram o que ia fazer na próxima semana respondeu que iria estar na costa alentejana. Quando lhe perguntaram se trabalhava por lá apenas respondeu que não. Mas o que fazes lá? Nada. E tudo o que tinha a ver com ele directamente as palavras saiam a custo. No final dessa noite fomos os dois a pé para casa. Eu morava ao pé dos pais dele. Iria passar lá a noite antes de voltar para o Alentejo. A medo, mas com a coragem cobarde do álcool no sangue perguntei-lhe de que tinha estado doente. Desconversou ao início. Mas quando falou não disse nada. Apenas algo que o manteve na cama durante muito tempo. Longe de tudo e todos. Demasiado tempo. Era a única lemúria. Demasiado tempo longe de tudo. E o que fizeste quando estiveste doente. Li. Apenas e só? Sim. Deixei de ver o Duarte durante vários anos após essa noite. Soube por amigos comuns que tinha ido para Londres. Em trabalho? Não, aparentemente de férias. A família tinha dinheiro que lhe suportasse aquele estilo de vida que já roçava o devaneio. Duarte tinha um curso numa boa faculdade mas andava a saltar de casa em casa da família e não trabalhava. Depois de um longo período no Alentejo veio para Lisboa. Alguns amigos contaram-me que o viam em esplanadas a ler. Quando lhe falavam lançava sempre o seu melhor sorriso. Um sorriso normal. O sorriso de quem sabe cativar. Conquistar pela simpatia e charme e desarmava qualquer tentativa de imiscuidade na sua esfera pessoal. O sorriso de quem não tinha nada. Nada. Nenhuma doença. Nada, e o nada aqui era a ausência de uma qualquer ocupação. Certa ou incerta. Depois de Lisboa foi para Londres. As coincidências são tramadas e o mundo é um lugar pequeno. Um outro colega encontrou-o por lá quando foi de fim-de-semana com a namorada. Duarte, há tanto tempo, como estás? Bem, e tu, pá? Que estás cá a fazer? Nada de especial. Estou cá já há uns meses. Visitar e passear. Continuava a não esconder que não tinha qualquer ocupação. Três anos depois desse encontro que me contaram encontrei-o. Foi em Lisboa. Tinha saído do trabalho e subia a Av. da Liberdade a pé quando o encontrei. Foi ele que me reconheceu primeiro. Sem qualquer embaraço na voz ou desconforto dirigiu-se a mim. Estava igual. Outra vez magro. Mais do que a última vez que o tinha visto. Continuava de cabelo rapado. Uma espécie de imagem de marca que tinha deixado tatuar-se à sua fisionomia. Rosto bem barbeado. Moreno. Estava bem vestido. Com todos os pormenores de quem ligava ao que se passava nas montras das lojas. Era o Duarte. Convidei-o para um café que aceitou. E pela primeira vez em anos vi-lhe um comentário em tom de crítica quando acendi um cigarro. A surpresa foi forte que o apaguei de seguida. Pedi um café e ele uma garrafa de água. Pousou a sua tote bag ao lado da cadeira e retirou de lá um caderno que me mostrou com um sorriso. Perguntei o que era aquilo? O meu último caderno da faculdade antes da minha doença. Referiu-se a ela. Directamente e sem ter sido interpolado. Sabíamos que tínhamos sido algo aproximado de amigos. Mas passados estes anos todos fiquei desconfortável. Mas embalado, e desta vez sem álcool, perguntei-lhe qual tinha sido a doença. Não respondeu. Fez um dos seus famosos sorrisos e um gesto com a mão. Aquele gesto que diz que não tem importância. Sabe que intriga muita gente, mas para ele não tem importância. A única resposta verbal que tive foi que tinha mudado a sua vida. Não me disse mais nada. Perguntei-lhe se agora fazia alguma coisa. Sim, trabalho num call center. Não pude deixar de fazer um olhar de surpresa. É digno, disse-me. Concordei, claro. Pedi desculpa se tinha sido mal interpretado. Não faz mal. Precisava de me ter ocupado. Ganhar algum dinheiro que fosse. Morava numa  das casas da sua família. Tinha uma mesada como sempre teve do avô que entretanto faleceu. Mesada essa que a partir da sua morte passou a ser assegurada pelo Banco e que aumentou quando terminou o curso. Perguntei-lhe pela família, pelos pais. Estavam bem, disse-me.

- A minha vida, sabes, nunca mais foi a mesma. Não interessa o que tive. Ou se ainda tenho. Marcou-me. E não me vai deixar. Há marcas que não são visíveis. Mas eu sinto-a. Todos os dias quando abro os olhos pela primeira vez de manhã ela está lá. Não podia continuar como se nada fosse. Terminei o curso porque tinha de ser. Não gosto de deixar coisas a meio. Mas foi um esforço enorme. Para mim. Como para toda a gente. Mas este peso é diferente. Nunca mais serei o mesmo, sabes? Ninguém vê a mudança. Os meus pais viram. Apenas eles. Quando terminei o curso deram-me as chaves da casa de Aljezur. Agradeci-lhes muito. O Verão foi movimentado. Muita gente por lá. Mas o Outono e o Inverno foi maravilhoso.  

5 comentários:

Lia disse...

Vais contar como foi o Outono e o Inverno? (diz que sim :$)

E disse...

Esta foi a primeira vez que escrevi sobre o Duarte. Houve uma altura que pensei continuar. e cheguei a tentar. Mas nunca aconteceu. Tal como a outra. pode ficar para sempre assim. Já sabes, histórias em Aberto.

Lia disse...

Se está em aberto é bom... É sinal que não está posto de lado uma continuação. Por isso, fico à espera!

E disse...

Talvez por influencia tua, hoje, na hora de almoço, escrevi mais uma pagina de continuação. Talvez haja mais.

Lia disse...

Se houver, quero ler. Se não houver, paciência. Outros "eternos retornos" e "duartes" haverão :)