segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Quando Os Putos Chegam A Lisboa

Fui despachado para um quarto armado em cela com uma janela para um pátio. Dúzias de gatos sem dono dormiam sob espadas de sol que atravessavam os prédios. Via-se-lhes as costelas. Tinham ramelas e ares de desprezo pelos humanos.  Era numa casa onde viveriam mais 3 pessoas. Não me importei, estava em Lisboa. Os meus pais apenas esperavam que terminasse o curso no tempo previsto. Tal como o meu pai o tinha feito. Despediram-se de mim à vez. A minha mãe em voz baixa, entre soluços curtinhos engolidos em seco, disse que se a minha vida passasse por Lisboa ela iria comprender. Deu-me um beijo na testa e um abraço. Seguiu-se a minha irmã. Duarte, levas-me um presente no natal? Um abraço depois já só faltava o meu pai.  Colocou-me a mão no ombro e olhou-me com assombro. Porque já era um homem com com dois filhos e despachava agora um para lisboa. Era o segundo da família a ir para a faculdade. O seu filho varão. Sentia que a sua tarefa estava perto de estar concluída. O orgulho metia-lhe a barriga para dentro e o ego impedia-o de derramar qualquer lágrima. Filho, foi assim que começou o seu curto discurso. Falou dos perigos de uma cidade grande. De pessoas más. Da importância do dinheiro. Que teria dinheiro para viver. Mais, teria que trabalhar, o que até me faria bem. Depois vi-os meteram-se no carro de três portas e seguirem. Fiquei sozinho. Fechei-me no quarto e arrumei as minhas coisas. No dia seguinte conheci os meus colegas de casa. Sentamo-nos os 4 no sofá a imitar camurça já gasta nas costas. Fizemos as regras que regulavam a nossa comunidade caseira. Não tive grande opinião sobre dois deles. Um vinha de uma cidade perto. Outro do norte. Perto da fronteira. Cheirava a chouriças. Ele era uma chouriça. Veio carregado delas. Gordo que ocupava dois lugares. Estava sempre com a testa reluzente. Ria-se a golfadas com o que o outro dizia. Nessa primeira noite iam sair. Caçar miúdas. As lisboetas são danadas, diziam. Voltaram para casa sozinhos. Nessa e nas noites seguintes. O terceiro era o mais calado. Cabelo espetado e uma surpreendente cara de ingenuidade e inocência. Cheirava a força bruta. Óculos de metal com aros redondos enfeitavam a cara sempre de espanto. Nessa noite, quando os outros estariam juntos a um balcão a olhar para miúdas que nunca iriam provar, ficámos em casa. Quando lhe perguntei de onde vinha disse-me que de Serpa. Vinha estudar para um dia ser professor. Não consegui imaginá-lo a impor qualquer ordem na sala de aula. Todos os professores que tinha tido estavam apenas de passagem pelo Algarve. Era a última escolha. No ano seguinte desapareciam. E vinha um outro. Tinha sido assim durante 8 anos. A excepção tinha sido a D. Rosário, a professora de primária. Uma senhora mais velha que os meus pais. Mais velha que alguém que eu conhecesse. Tão velha e tão resistente à vida que foi professora da minha irmã. Perguntou-me o curso que vim tirar. Tradução, respondi. Quando me perguntou porquê não soube responder. Fazia perguntas a disparar as palavras. Algumas não se percebiam bem. Falava mal. Eu culpava a pronúncia alentejana. Ele dizia o mesmo de mim. Culpava a minha pronúncia algarvia. Ria-se com algumas expressões que dizia. Roubei uma chouriça do outro com que fiz uma sandes. Victor, o alentejano, disse que era contra as regras que tínhamos feito, roubar a comida dos outros. Mas as chouriças eram aos montes que duvidava que as tinha contado. Além de que os outros não pareciam nobres respeitadores da legislção caseira, que chamei à sandes de chouriça o primeiro acto de desobediência cívica legítima. Ele insistiu, porque tinha escolhido tradução? Não queria fazer nada da vida? O seu pai sempre lhe tinha dito que uma vida sem objectivos era uma vida sem nada para mostrar. Sei lá, desde puto que oiço falar estrangeiro na rua, português em casa. No verão perco conta aos idiomas. Tradução pareceu-me apenas lógico. À janela da sala, a mesma que mostrava o pátio do meu quarto, vi os gatos lá em baixo enrolavam-se uns nos outros. Tentavam cuspir o frio dos seus corpos. Chamei o Victor a ver os bichos. Perguntei-lhe se os gatos tinham um outro objectivo que não fosse sobreviver e continuar a odiar quem lhes tinha posto naquela situação. Ele pareceu ficar confuso. Um curso, no fundo, é isto, tentar sobreviver, nada mais. O seu olhar embaciado de supresa não se desviava de mim. Tiras um curso, tentar arranjar um trabalho e procuras enriquecer. E é isto. Ele continuava sem responder. Disse-lhe boa noite e fui para o quarto. 

2 comentários:

Mafalda Beirão disse...

E é a mais pura das realidades. Olhar para o que escreves e identificar tantos amigos aí...

E disse...

Até o da chouriças?!? ;)