sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A esperança mata-se com um cordel

Um dia fui um sádico. O que é engraçado quando um dos meus melhores amigos me disse um dia "não sejas tão boa pessoa". O mais provável é nenhum de nós estar certo, eu nunca fui um sádico e também nunca fui boa pessoa. Mas a verdade é que naquele dia fui um sádico. Isso é o que interessa para a memória daquele dia.

Matei a esperança com um cordel. E só me apercebi do que tinha feito anos depois. Não me recordo já bem como tudo começou. Os meus pais deixaram-me nos meus avós nas férias da Páscoa. Os meus avós viviam no campo numa casa ao fim da rua. Para lá da sua casa, com um quintal onde brincava, só mata. Naqueles dias cheios de azedas a desflorar. Os meus avós tinham um cão já velhinho. Cego de um olho. Tinham-no adoptado depois de um pastor ter decidido que já não servia para guardar o rebanho de meia dúzia de ovelhas. Eu gostava do cão. Com um nome tão pouco original de Farrusco. Fazia-me companhia naqueles dias que lá passava. E num desses dias, mesmo velho, conseguiu trazer um pardal na boca. Nunca tinha tido um pardal nas mãos. Demasiado pequeno. Demasiado assustado. Demasiado frágil.

Não o soltei. Limpei o suor da testa com uma mão enquanto segurava o pardal com a outra. Tive um coração a bater na palma da mão. E a sensação foi estranha. Um ser demasiado fraco para se proteger. E a nossa mão é a maior força que conhece no mundo. Quis ficar com o pardal. Atei uma ponta de um cordel a uma das suas patas. A outra ponta atei-a ao poste da corda onda a minha avó secava a roupa. E naquele momento condenei o pardal.

Em desespero não existe esperança. Em voos sem destino voa do chão para o chão. Em tombos violentos que o condenaram. E eu, sádico e perplexo com o Farrusco ao meu lado, assisti sem nada fazer. Assisti à luta pela liberdade. Sabendo que naquele pequeno corpo não havia esperança. Não havia mais liberdade. Não havia nada que uma luta cega desesperante pelo céu.

Hoje, quando alguém faz algo irracional, olho para o que não vejo. O cordel invisível que leva essa pessoa ao desespero. À ausência de esperança.     

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